sexta-feira, 24 de outubro de 2008


A Era digital



Em pouco menos de 50 anos, os computadores deixaram de ser aparato da indústria bélica, sempre em busca de armas e tecnologias de espionagem à prova de inimigos, para se tornarem objeto de decoração nas residências, onde servem de instrumento de pesquisa e entretenimento para toda a família. Essa revolução silenciosa alterou a dinâmica da sociedade e promete grandes mudanças na política, nas artes, na economia, no relacionamento entre as pessoas. Ao criar uma forma de negociação entre empresas e consumidores sem a figura do intermediário, a Internet trouxe o combustível necessário para a explosão do comércio online. Mesmo quem não tem computador e nunca navegou pela Internet participa da sociedade digital.
ReproduçãoOs circuitos eletrônicos são quase onipresentes e os exemplos não faltam. Uma casa típica de classe média sem computador tem cerca de 40 processadores, ou chips, espalhados pelo microondas, videogame, telefone e outros eletrodomésticos. Quando há um PC, o número sobe para 50 chips. Quem usa cartão de banco, faz débito automático ou saque em caixa eletrônico também depende de informações digitais. O mesmo vale para quem acumula milhas aéreas, controla as vacinas infantis e acumula pontos por encher o tanque do carro nos cartões de fidelidade com chip embutido, os chamados smart cards. Enquanto na revolução industrial o automóvel era o maior ícone das linhas de montagem, o Boeing 777 é duplamente um símbolo da velocidade supersônica da era da informação. Totalmente projetado e testado em computadores, o novo jato da Boeing fez seu vôo inaugural nos ares, sem simulações reais, e seu funcionamento é monitorado por 1.300 processadores, dez vezes mais do que os primeiros modelos 707 da companhia a sair de fábrica com controles digitais, nos anos 60.
Darcio de Jesus
Só porque o mundo agora está online foi possível que descendentes das vítimas do Holocausto consultassem, de qualquer lugar do mundo, as contas bancárias de seus familiares confiscadas pelos bancos suíços. Bastava digitar o nome na página da organização Simon Wiesenthal para localizar o dinheiro pilhado pelos nazistas. No mês passado, o Ministério da Cultura da Alemanha colocou à mostra, pela Internet, as 13 mil pinturas, esculturas e livros da coleção Linzer, que reúne obras de arte surrupiadas de famílias judaicas durante a Segunda Guerra Mundial. Outro indicador da era da informação foi a divulgação na Web do relatório do advogado americano Kenneth Starr, com detalhes picantes do caso extraconjugal entre Bill Clinton e a estagiária Monica Lewinsky. Os servidores onde estava a íntegra do Relatório Starr ficaram atolados de curiosos durante dias, em setembro do ano passado. Todos queriam ler os detalhes do depoimento da estagiária, que revelou como Clinton usou charutos numa relação sexual em plena Casa Branca. Apesar de tanto furor em torno da Internet, a riqueza do universo digital não se resume apenas à rede de computadores. Fabricantes de chips e programas pesquisam formas de interligar os aparelhos eletrônicos que nos rodeiam. Máquina de lavar roupa e microondas com acesso à rede, geladeira inteligente, agendas eletrônicas que comunicam-se sem fio com o PC. Tudo isso existe em protótipo ou funcionando. Mas está distante o dia em que, ainda no escritório, ligaremos o forno da cozinha para chegar em casa com o jantar quentinho.
A velocidade das mudanças é tão avassaladora que três das mais importantes tecnologias do momento não existiam há 20 anos: o telefone celular, a Internet e o CD. Hoje os avanços estão em todos os lados: na medicina, na economia, nas artes, no dia-a-dia. No Brasil, as pesquisas apontam que assiste-se menos à tevê e muitos sacrificam horas de sono para trocar e-mails, navegar pela rede ou entrar nas salas de bate-papo online. O horário de pico de audiência na Internet começa ao anoitecer e vai até o início da madrugada, quando as tarifas telefônicas são mais baratas. Outro forte indicador de que algo mudou na sociedade brasileira é a adesão em massa à entrega do Imposto de Renda online. A Secretaria da Receita Federal incentivou a entrega de declarações via computador. Oferecia como recompensa um lugar privilegiado na fila para receber a restituição do imposto, mas o volume de entrega de declarações eletrônicas foi tão grande que surpreendeu o próprio Leão.
A quarta edição da Pesquisa Internet Brasil feita em nove regiões metropolitanas pelo instituto Ibope e pelo site de buscas Cadê? indica que, de dezembro do ano passado até junho deste, 750 mil brasileiros entraram pela primeira vez na rede. Na única pesquisa sistemática realizada sobre o mercado nacional estima-se que existam ao menos 3,3 milhões de brasileiros plugados à rede, o que nos coloca entre os países mais conectados do planeta, embora esse índice represente menos de 5% dos brasileiros. O País ainda engatinha na era digital. No mundo inteiro, 97 milhões de pessoas acessam a Web usando o computador de casa, conforme revela estudo da americana Ovum Ltd. Esse número deve saltar para 240 milhões em 2004. Da mesma forma, as empresas e os executivos plugados que este ano serão 53 milhões, daqui a cinco anos devem somar 180 milhões, segundo a pesquisa. Com preço médio de R$ 35 ao mês, o acesso à rede ainda está longe de ser acessível às classes D e E. Integrantes das classes A e B representam a imensa maioria dos usuários (84%), enquanto 13% integram a classe C, outra vez de acordo com a enquete do Ibope/Cadê?
Leo Caldas/Ag. Lumiar
Velocidade da luz – Com sua habilidade em percorrer milhares de quilômetros na velocidade da luz, o correio eletrônico aproximou pessoas, eliminou fronteiras e aboliu o fuso horário. Fala-se com alguém em Salvador ou em Paris no mesmo instante, como se todos estivessem presentes numa única sala. "Tudo acontece em tempo real, no aqui e no agora, e conversa-se com um colega no Japão com mais facilidade do que se ele estivesse no andar de baixo", compara Silvio Meira, professor titular do Departamento de Informática da Universidade Federal de Pernambuco. Há quase dois anos suas fontes de informação, discussão e trabalho estão restritas à rede e aos livros. "A era da informação é uma combinação de fatores. A tecnologia traz a possibilidade, a ciência vem com a verdade e a arte, com a beleza e o apuro estético", define o professor. Estudioso do impacto da informática no comportamento da sociedade, Meira preside o Centro de Estudos Avançados do Recife (Cesar), organização não-governamental que coloca à disposição das empresas os cérebros mais brilhantes da universidade. O resultado vem na forma de soluções criadas pelos acadêmicos para suprir necessidades práticas das companhias. Meira também avalia o lado crítico da tecnologia. "A missão primeira da computação sempre foi tornar a vida do ser humano mais fácil. Só que aconteceu o contrário. Ninguém previa tamanho aumento da competição no mercado de trabalho."
Tempos modernos – Depois de anos a fio apertando porcas e parafusos nas linhas de montagem das fábricas de automóveis, o ser humano buscava eliminar atividades repetitivas. Pouco a pouco, as máquinas foram eliminando tarefas fatigantes (muito bom!) e substituindo postos de trabalho (nada bom!). No início do século, as fábricas concentravam as massas de trabalhadores. Agora as mãos foram trocadas por eficientes braços mecânicos. Como resultado surgiu uma sociedade baseada na troca de serviços, onde a informação é uma preciosidade, verdadeiro mecanismo de poder. O sociólogo italiano Domenico de Masi relata em seu livro A sociedade pós-industrial (Ed. Senac) que existem mais de mil nomes para designar a fase na qual vivemos. As definições vão desde Sociedade do Capitalismo Avançado, como chamou o economista canadense John Kenneth Galbraith, até Terceira Onda, na opinião do futurólogo americano Alvin Toffler. Ou ainda era da descontinuidade, como preferiu o guru das empresas Peter Drucker. Independentemente do nome escolhido, o que importa é que a vida mudou. "Nos últimos 25 anos deste século que se encerra, uma revolução tecnológica com base na informação transformou nosso modo de pensar, produzir, consumir, negociar, administrar, comunicar, viver, morrer, fazer guerra e fazer amor", escreve o sociólogo catalão Manuel Castells, em O fim do milênio (Ed. Paz e Terra), último volume de uma trilogia monumental sobre as influências da era da informação na sociedade e economia.
Do mesmo modo como rompeu fronteiras geográficas ao aproximar pessoas que se conversam apesar de estar em continentes distintos, o e-mail também alterou a percepção do tempo. Tudo parece mais rápido no mundo da competição globalizada. Fecham-se negócios na rapidez com que uma mensagem pisca na tela. E, se hoje é alto o índice de pessoas que tomam decisões diariamente pelo correio eletrônico, é bom lembrar que a falta de cuidados com o e-mail pode colocar uma empresa em apuros. Foi o que aconteceu com a Microsoft, acusada formalmente de práticas monopolistas por um juiz federal dos EUA. Além dos depoimentos, a acusação tinha como provas uma montanha de e-mails comprometedores. Na correspondência eletrônica, Bill Gates soltava o verbo. Distribuiu ordens para esmagar a concorrência, mencionou produtos, nomes e fatos. Tudo por escrito, com riqueza de detalhes. O que ninguém esperava era ver esses documentos na mão da Justiça, num processo aberto por Washington e mais 19 Estados contra a empresa do homem mais rico do mundo. Depois do susto, muitas corporações recomendaram que os funcionários apagassem documentos confidenciais. O mesmo vale para quem não quer que seus dados pessoais caiam em mãos indesejadas. Apesar da evidente falta de privacidade online, o e-mail revolucionou a forma de comunicação entre as pessoas.
PC sensível – Na conversa digital, contudo, desaparece um fator importante no relacionamento humano: a comunicação não-verbal, traduzida em gestos e expressões que a inteligência do computador jamais vai captar. Para amenizar esse obstáculo, os cientistas dedicam-se a criar máquinas capazes de reconhecer ao menos as expressões de face do seu dono. Atualmente os laboratórios da IBM e do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) conduzem pesquisas para criar máquinas capazes de capturar expressões de satisfação ou raiva de seus usuários. O objetivo é programar o computador para que ele dê respostas condizentes com a ocasião, como corrigir seu próprio erro e abrir um novo arquivo, por exemplo. Um dos projetos em estudo na IBM é uma tela com sensores embutidos para "pescar" o olhar de quem fica diante do PC. "Em vez de usar o mouse, os olhos poderiam guiar-nos pela tela", descreve Jean Paul Jacob, pesquisador brasileiro do laboratório da empresa em Almadén, no Vale do Silício, e professor na Universidade da Califórnia em Berkeley. "O objetivo da informática é tornar-se invisível aos olhos", explica Jacob. O que não se aplica necessariamente aos sentidos. Embora a idéia de clonar andróides e criar ciborgues esteja próxima apenas dos roteiros hollywoodianos de ficção-científica, existem esforços para que o computador assimile algumas das formas de percepção oferecidas pelos cinco sentidos humanos. A sinergia dos sentidos e da máquina, aliás, foi o tema de debate de diversos especialistas reunidos na Universidade de Chicago, em outubro passado. "Está cada dia mais sutil a fronteira entre a medicina, a física, a biotecnologia e o trabalho dos artistas da era digital", conta Analivia Cordeiro, bailarina que representou o Brasil no congresso de Chicago. Filha do artista plástico Waldemar Cordeiro – pioneiro no País a fazer arte com computação, no início da década de 70 –, Analivia criou um programa para estudar o movimento do corpo e reproduzi-lo em aulas de dança. Outro artista brasileiro que traz a tecnologia na pele é Eduardo Kac, também professor da Universidade de Chicago. Ele implantou um chip no tornozelo e cadastrou-se pela Internet num banco de dados de animais perdidos. Fez isso para mostrar que, no futuro, poderá carregar o chip com dados que ficam armazenados para sempre em seu corpo. Outro de seus projetos é a criação de um cachorro transgênico, que terá inserido no seu DNA trechos do código genético de uma água-viva. Assim, o cão emitirá luz verde fluorescente quando exposto ao sol, como acontece com a água-viva.
Contra o relógio – A mesma tecnologia que oferece uma nova maneira de fazer arte também serve para aumentar a produtividade. Os aparelhos digitais tornam qualquer um localizável a qualquer hora do dia ou da noite. Resultado: trabalha-se demais. "Para continuar competitivas internacionalmente, as empresas não podem contratar funcionários. Quem tem emprego trabalha muito e quase não há distinção entre trabalho e lazer", analisa Silvio Genesini, sócio-diretor da Andersen Consulting, uma das cinco maiores consultorias empresariais do mundo. Assim como ocorreu no século passado, quem estiver preparado para a evolução da sociedade tem mais chances de sobreviver na economia globalizada e baseada na informação digital. O problema é que nem sempre estar preparado para o mercado de trabalho significa arrumar emprego. Segundo Domenico de Masi, professor na Universidade La Sapienza, em Roma, os aparelhos tecnológicos, em conjunto com novas formas de organizar a produção nas corporações, "liberaram um número cada vez maior de pessoas de seu trabalho e, consequentemente, de seu salário. Infelizmente, a evolução social é muito mais lenta do que a científica e a tecnológica, por isso é difícil implementar os mecanismos de redistribuição das tarefas de modo que seja possível trabalhar menos e todos possam trabalhar".
A velocidade dos avanços tecnológicos é tão alucinante que a fabricante de relógios Swatch criou um horário específico para a Web. Nesse novo sistema, o dia começa à meia-noite. Mas o marco zero não é o meridiano de Greenwich e sim a cidade suíça de Biel, sede da Swatch. O dia digital foi dividido em mil beats (batidas, em inglês). Cada um equivale a um minuto e 26,4 segundos. Enquanto um relógio convencional mostra meio-dia, o tempo da Internet indica @500. Com isso, afirma a fabricante suíça, podem-se marcar reuniões por e-mail ou videoconferência sem se preocupar com fuso horário. Embora pareça excentricidade, é certo que no mundo digital não há mais diferença entre fazer negócios, trabalhar, divertir-se ou comprar durante o dia ou à noite, no fim de semana ou nas férias. "O tempo intemporal passou a substituir o tempo cronológico da era industrial", decreta Manuel Castells, professor na Universidade da Califórnia em Berkeley. Todo dia, a qualquer hora, em qualquer lugar, sempre é hora de trabalhar. Foi pensando nisso que o hotel Ritz-Carlton de Kuala Lumpur, na Malásia, resolveu criar uma diária de 24 horas que começa na hora em que o hóspede chega ao quarto. Em função do fuso horário, um executivo americano que decolou de Los Angeles de dia pode pousar na cidade às três da madrugada. Ele não vai mais precisar aguardar o check-in do dia seguinte. Nem botar as malas fora do quarto ao meio-dia no dia da partida.
Os reflexos da nova sociedade são mais visíveis na economia, mas a esfera política também precisa adequar-se. Em Washington, os analistas comemoram o fato de que candidatos antes alijados do processo eleitoral por falta de recursos hoje disputam o mesmo espaço com políticos dotados de orçamentos milionários: um site na Web. "Na próxima década haverá a convergência entre telefone, televisão, satélites, emissoras de TV a cabo e Internet. O usuário então terá muito mais poder para decidir o que lhe interessa", diz o venezuelano Gustavo Cisneros, presidente do Grupo Cisneros. Eleito há dois anos um dos homens mais poderosos do mundo pela revista americana Vanity Fair, o magnata latino-americano das comunicações comanda 12 emissoras de tevê, a operadora por satélite DirecTV e tem 50% do provedor de acesso que a America Online acaba de inaugurar no Brasil. "O acesso aos meios tecnológicos garante uma pressão muito maior da sociedade sobre seus governantes", resume Cisneros. No cenário internacional, a revolução digital deixa evidente que a ameaça pode partir de um único PC escondido num remoto canto do planeta

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